A ilusão que vem do Chile

O Chile tem um novo presidente, que governará o país até 2026. Gabriel Boric derrotou José Antonio Kast e foi eleito presidente do Chile. Com 99,47% das urnas apuradas, Gabriel Boric tinha 55,86% dos votos válidos, enquanto José Antonio Kast tinha 44,14%. Boric é deputado e ex-líder estudantil, se diz marxista e, mais uma vez, representa a ilusão de mudança da vida dos trabalhadores por meio do voto. Num país que viveu um ascenso revolucionário nos últimos anos e após uma eleição em que a maioria dos chilenos se recusou a votar em qualquer um dos candidatos, Boric cumprirá o papel de “bombeiro” para normalizar o capitalismo e a gestão do Estado burguês chileno.

Internacional - 21 de dezembro de 2021

O Chile tem um novo presidente, que governará o país até 2026. Gabriel Boric derrotou José Antonio Kast e foi eleito presidente do Chile. Com 99,47% das urnas apuradas, Gabriel Boric tinha 55,86% dos votos válidos, enquanto José Antonio Kast tinha 44,14%. Boric é deputado e ex-líder estudantil, se diz marxista e, mais uma vez, representa a ilusão de mudança da vida dos trabalhadores por meio do voto. Num país que viveu um ascenso revolucionário nos últimos anos e após uma eleição em que a maioria dos chilenos se recusou a votar em qualquer um dos candidatos, Boric cumprirá o papel de “bombeiro” para normalizar o capitalismo e a gestão do Estado burguês chileno.

Kast já reconheceu a derrota e escreveu: “Acabei de falar com Gabriel Boric e parabenizá-lo pela grande vitória. A partir de hoje é o Presidente eleito do Chile e merece todo o nosso respeito e colaboração construtiva. Chile em primeiro lugar”. A burguesia muda suas peças, mas segue controlando o jogo… O que parece uma grande mudança não passará de uma continuidade diferente da mesma coisa.

Apesar da vitória de Boric ser o grande tema das análises burguesas, metade dos eleitores chilenos não votou em ninguém e o “não-voto”, somando abstenções, nulos e brancos, foi muito superior aos votos em Boric ou Kast.

Reformismo: uma história de decepções e traições

Boric é descrito como “ultra esquerdista” ou “radical de esquerda” por parte da imprensa e por seu adversário, Kast. Não é nada disso. Numa publicação no Instagram logo após a vitória já garantiu: “Somos unidade. Somos esperança. Somos mais quando estamos juntos. Seguimos!”. Na campanha inteira, tratou de garantir que as “denúncias” de que faria do Chile um país socialista eram mentiras, que não vai alterar nada de profundo do regime democrático-burguês nem da estrutura econômica capitalista do Chile. Já eleito, assume seu tom de conciliação de classes ainda mais diretamente. Boric governará para os grandes empresários e terá uma coalizão com partidos burgueses de “centro-esquerda” para governar, em conjunto com parte dos que estiveram no poder do Chile nas últimas décadas.

Um presidente “socialista” não é inédito no Chile. Em 1970, O candidato do Partido Socialista, Salvador Allende, foi eleito com um programa ainda muito mais à esquerda que Boric. Mesmo sem ser, realmente, um candidato revolucionário ou que fosse romper com o capitalismo e encabeçar um governo dos trabalhadores, Allende fez milhões de chilenos e ainda muito mais gente sonhar com o “socialismo pela via pacífica” das eleições burguesas. No governo, Allende defendeu a grande propriedade privada, manteve intacta a estrutura das Forças Armadas burguesas e, em 1973, foi derrubado por um golpe de seus próprios generais.

Augusto Pinochet, hoje um ícone da extrema-direita latino-americana, foi promovido a general de divisão em janeiro de 1971, após apenas 2 meses de governo Allende, cujo governo também o nomeou comandante-general do Exército de Santiago. Em 1972, tornou-se general-chefe do Exército. E em setembro de 1973, nesta posição obtida no governo Allende, Pinochet se elevou a comandante em chefe após a renúncia de Carlos Prats, ainda jurando lealdade a Allende, que permitiu passivamente todos estes movimentos, até que o golpe militar fosse inevitável. Era o fim da trágica ilusão de “socialismo via eleições”.

Após décadas de regime militar, o Chile voltou à democracia burguesa em 1990, com o democrata-cristão Patricio Aylwin, e desde então, como no Brasil, na Argentina, no Peru, no Uruguai, etc., se alternam governos considerados de direita com os considerados de esquerda. Mas a estrutura burguesa do Estado, suas instituições e regime político; a exploração dos trabalhadores e os governos para os patrões seguem intactos. Ricardo Lagos, um “socialista”, que admitia não crer em deus(es), acusado de querer implantar o comunismo no Chile, foi eleito e governou de 2000 a 2006. Não implantou o comunismo, nem governou para os trabalhadores e nada mudou.

Michelle Bachelet foi a sucessora de Lagos, e governou o Chile por 8 anos, de 2006 a 2010, e novamente de 2014 a 2018. “Socialista”, Bachelet teve o pai preso e assassinado por Pinochet, e ela mesma foi presa e exilada pela ditadura. Sua eleição, em certo aspecto parecido ao que depois ocorreria com Dilma no Brasil, marcou um inédito governo de uma mulher, “socialista” e “radical”, ligada à luta contra a ditadura. Tal como Dilma, o governo burguês de Bachelet manteve as Forças Armadas impunes, os torturadores livres e os negócios da burguesia funcionando normalmente.

Nos 12 anos de governos “socialistas” de Lagos e Bachelet, a educação do Chile seguiu privatizada, a saúde um caos e a previdência social inacessível aos mais pobres. Os povos indígenas seguiram sendo atacados, sem seus direitos reconhecidos, e o neoliberalismo chileno se manteve inalterado e sendo um ”exemplo” para os demais neoliberais sul-americanos. Entre outros crimes contra os trabalhadores, a “socialista” Bachelet esteve à frente da ocupação militar do Haiti, junto do Brasil, Argentina e outros países com governo “de esquerda”, que ajudaram a massacrar o povo haitiano e manter um governo ilegítimo de ocupação por mais de 10 anos. 

Em outros países, o reformismo nunca foi diferente. Dezenas de países já tiveram seus governos de “esquerda” e “socialistas” por meio das eleições, e absolutamente todos eles governaram para os ricos e contra os trabalhadores. A ilusão na mudança por dentro do próprio capitalismo, via eleições, é antiga, e cumpre o papel que a burguesia estabeleceu: impor sua ditadura burguesa de classe através de mecanismos que passem a impressão de que não há ditadura de classe nenhuma, e que todos podem governar. Que a pobreza, o desemprego, a exploração, o machismo e o desespero da vida cotidiana podem mudar sem ruptura nenhuma, e basta ter paciência e aguardar as próximas eleições, tomando cuidado para “votar com consciência”.

Na verdade, as eleições são uma farsa, em que ganhe quem ganhar, a vida não vai mudar. Nos EUA, Obama seguiu deportando mexicanos em massa, fazendo guerras imperialistas, ocupando países, espionando a população, enquanto a polícia seguiu matando negros do mesmo jeito. Miterrand, na França dos anos 80, manteve o colonialismo, atacou direitos dos trabalhadores e governou para a burguesia francesa e mundial. Lula no Brasil, os peronistas na Argentina, Evo na Bolívia, Lopez Obrador no México e todas as dezenas de governos que carregaram a esperança do povo nas eleições; sempre se transformaram em decepção e traição logo em seguida.

Um dos exemplos recentes mais marcantes foi a eleição do Syriza na Grécia, em 2015. O próprio nome Syriza carrega o significado de “esquerda radical”, e toda sua trajetória era de discursos e um programa muito mais “socialistas” e anticapitalistas, se não “revolucionários”, do que um Boric ou qualquer outro governo “socialista” ou “de esquerda” eleito nas últimas décadas. O Syriza se elegeu prometendo tirar a Grécia do fundo do poço, romper com o Euro, reverter privatizações e governar para os trabalhadores. Em poucos meses de governo, mantiveram o Euro, privatizaram empresas, fizeram a pior e mais dura Reforma da Previdência contra os trabalhadores e desmontaram a revolução que se construía desde a base dos movimentos operários e populares na Grécia.

As Frentes Populares são governos burgueses, inimigos dos trabalhadores, e somos oposição a elas desde seu primeiro dia.

Há mais de 100 anos, no mundo inteiro, centenas de partidos “socialistas” vencem eleições, candidatos “radicais de esquerda” assumem governos e nada muda. Nada. A diferença entre governos como o que Boric vai fazer é no aspecto subjetivo, de como ele é entendido pelas classes. O revolucionário russo León Trotsky descreveu este tipo de governos como sendo de Frente Popular. Governos que, na América Latina, foram maioria durante muito tempo nos anos 2000. E nada mudou!

As Frentes Populares são governos que administram o capitalismo e os negócios da burguesia. São parte do Estado burguês e necessariamente governam contra os trabalhadores. Muitas vezes, são o último recurso da burguesia para estabilizar os regimes, e manter seus lucros sem o risco de uma revolução proletária e popular. Em alguns casos, como no Brasil dos anos 2000, são Frentes Populares preventivas, antes que a fome, a raiva e as lutas do povo possam tomar um rumo perigoso para os patrões. Assim, as Frente Populares aparecem para canalizar a revolta social para dentro do sistema, acalmando as lutas e pacificando o capitalismo, antes de uma explosão maior. Na maioria dos casos, porém, as eleições de governos de Frentes Populares são decorrência de processos revolucionários anteriores, alguns deles ainda em andamento. É o atual caso do Chile.

Há alguns anos, o Chile vive um processo revolucionário. As massas chilenas, com as mulheres à frente, junto de portuários, operários, mineiros, professores, indígenas, estudantes e trabalhadores de todos os setores, só não derrubaram o governo de Sebatián Piñera, atual presidente, porque as direções do movimento (incluindo aqueles que depois viriam a organizar a candidatura eleitoral de Boric) frearam a revolução para esperar as eleições. O objetivo dos setores eleitoreiros e reformistas era construir uma nova Constituição, e ganhar as eleições. Conseguiram as duas coisas. Mas o preço pago foi terem desmontado a revolução, mantido o assassino Piñera até hoje no governo, assim como todos seus parlamentares criminosos, e os negócios capitalistas intactos.

Sem o avanço da revolução, a vida dos chilenos segue piorando; se queria mudar tudo – e muitos morreram nas ruas por isso – e não se mudou nada no que se refere à exploração da maioria da população. Com o governo Boric, algumas conquistas seguirão sendo arrancadas – não por obra do governo, mas pelas lutas das ruas, assim como algumas conquistas já foram conseguidas no governo Piñera, para que a revolução fosse contida. Mas nenhuma conquista parcial que se obtenha poderá mudar a estrutura econômica de pobreza, violências contra a mulher, racismo, recolonização nacional e exploração dos trabalhadores.

As Frentes populares são um governo burguês, cuja natureza é essencialmente a mesma de todos os demais governos burgueses: preservar o capitalismo e suas instituições, garantir a propriedade privada e o lucro dos grandes patrões, e atacar a classe trabalhadora, impedindo, com todos os meios necessários, uma revolução. Mas, apesar do mesmo conteúdo burguês, as Frente Populares têm uma aparência diferente. Elas parecem ser o que não são. Por isso, são governos burgueses atípicos.

São governos vistos como da classe trabalhadora pela maioria ou boa parte dos trabalhadores, apesar de nãos serem. E, muitas vezes, também recebem a desconfiança da grande burguesia, que, mesmo beneficiada por estes governos, se organiza para, logo que haja condições e correlação de força adequada entre as classes, derrotá-los e colocar no poder governos mais explicitamente comprometidos com seu programa.

Por serem governos apoiados por sindicatos e lutadores, e muitas vezes combatidos por setores mais reacionários, as Frentes Populares, mesmo governando para a burguesia, podem passar anos confundindo a classe trabalhadora, liderando um ”enfrentamento” fictício contra quem “não os deixa governar”, “defendendo a democracia” e outros supostos combates que não passam de ilusões, enquanto, em seus governos, o capital segue se concentrando ainda mais nas mãos de poucos, e a maioria da população vai ficando ainda mais pobre e sem direitos.

Boric é um rosto novo para um sistema velho. Mudou a aparência, mas a essência seguirá a mesma. E os trabalhadores devem fazer oposição incondicional a Boric desde seu primeiro dia de governo. Exigindo que atenda as demandas da maioria do povo chileno e denunciando e combatendo todos seus ataques.